Caminhada

Sapatos na nuca
Saia amarrada
Embaraço de fios
passos marcados

Areia nos olhos
Pouca visão
Areia dos dedos
Roçando no chão

Cabelos ao vento
Cabeça no ar
Olhar esquecido
De tanto calar

Longa caminhada
Na areia molhada
Gotas da jornada
Na saia enrugada.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Pitágoras for dummies

Esse texto foi escrito por um amigo do Instituto de Estudos Espírita que frequentamos. Achei interessante dividir, afinal, é uma história que deveria mexer com todos nós.

Pitágoras for dummies

Ora vejam só, quem diria. Pitágoras, aquele dos catetos e hipotenusas e triângulos retângulos talvez nunca tenha existido. Calma, o teorema continua valendo, ninguém te enganou. E outras coisas pitagóricas estão vivinhas por aí onde você menos espera. Por exemplo: a noção de que a natureza, o mundo, a música, tudo seria explicável por números.

Tá bom, isso parece óbvio agora, mas há 2500 anos a idéia era, convenhamos, bem original, tão original que acabou impactando Platão, Euclides, e mais umas dezenas de gênios adiante.

Um exemplo cotidiano: os livros na minha estante são uma indicação clara de que vou viver 300 anos. E como sigo comprando sem parar, logo-logo vou precisar de uns cinco séculos pra dar conta.Eu não vou viver 500 anos??? Jura? Xi, por que eu compro tanto livro, então?Digamos, então, que minha hipótese highlander esteja errada e juntemos a isso outra hipótese que muito me agrada (e que pode ser do teu gosto, o que eu muito respeito), que também é de naturezanumérica: só se vive uma vez. Ou nenhuma vez, como parece ter acontecido com o Pitágoras.(Isso é uma hipótese de trabalho, não um ataque à credos religiosos, ok?

Aliás... a própria noção de uma alma imortal é pitagórica também, de 500 anos antes de Cristo) Se eu só vivo uma vez e por um tempo relativamente limitado, então é melhor repensar alguns dos meus hábitos. E sobretudo as manias. E sobretudo agora, que metade do meu tempo já se foi. Eu passei um bom tempo da minha vida estudando algo que não me entusiasmava muito, mas me consolava sabendo que no fundo eu tinha mil talentos. Fiquei nesse jogo tolo por anos e anos até que me caiu aficha: quem disse que eu tenho talentos? E que talentos são esses? Do que eu sou realmente capaz? Qual meu estilo, meu jeito, minha singularidade, minha pegada? Vou ficar a vida inteira sem saber? Well, não fiquei.

Abri mão daquela carreira (modo elegante de dizer que abandonei a faculdade e comecei outra) e resolvi dar a cara pra bater. Resolvi tirar a limpo essa lenda íntima de que no fundo eu era único. Claro que não foi fácil. Claro que não foi gostoso. Se não fossem outros gregos e romanos pra me inspirar (Heráclito, Epicuro, Lucrécio, sofistas, etc) e mais uns bons amigos meio doidos e livros e filmes e poetas e músicos e pintores eu talvez adiasse isso por mais uns 500 anos. Ou deixasse pra outras vidas.

Mas, como já mencionei, prefiro pensar como outro grego, o Ulisses. Se você não leu Homero tudo bem, eu resumo: Ulisses está tentando voltar pra casa antes que algum aventureiro lance mão... da Penélope. O caminho de volta é cheio de percalços (uma odisséia, por assimdizer) e ele acaba caindo numa ilha paradisíaca onde morava uma deusa (nos dois sentidos). A moçoila olímpica se apaixona pelo herói e, well, seguem-se dias e dias de amor di-vi-no (literalmente). Cada vez mais apaixonada, a deusa dá uma cartada : fique comigo e te faço imortal.O que você diria? Pense bem: ilha grega + amor + sexo + juventude eterna. Parece paraíso, não?Pro Ulisses não. Pro Ulisses essa história de imortalidade é coisa para os fracos. Aventura mesmo, emoção mesmo, coragem pra valer é ser mortal. Nobre e heróico mesmo, mais do que ganhar batalhas, é voltar pra casa e assumir o seu papel no mundo. E a deusa ficou a ver navios, morrendo de saudade pro resto da vida (o que, no caso de um imortal, é bem ruim).

Pois bem: eu resolvi largar a mão de jogar tempo fora e descobrir o que eu tenho de singular, de único, aquilo que só eu sou capaz de fazer. Vinte anos depois posso dizer uma coisa boa e outra meia-boca:- já sei do que sou capaz- já sei do que não sou capaz (e a lista é vasta, o que é bom pra não passar a vida inteira tentando ser o que não sou) Por que esse papo “existencial”, agora? Pra contar das minhas escolhas de vida?Não. Minha intenção aqui é provocar você e tirar – quem sabe – alguém da zona de conforto. Conforto é coisa pra gato gordo no sofá, não pra essa nossa espécie que se reinventa a cada cinco minutos.

E o que me motivou a provocar você? Algo que vi na internet? Não, não, foi uma conversa ao vivo e a cores com um cara que eu não conhecia. O rapaz é ilustrador e diretor de arte numa agência. A história dele é bem legal. Nem me lembro de onde ele é, só sei que é longe, e desde moleque ele gostava de desenhar, gostava tanto que se inscreveu num curso por correspondência (sim, isso foi pré-web). Lá no fim do mundo não havia mercado pra artistas, então começou como assistente numa empresa. Como o menino se interessava muito pelo trabalho dos projetistas (na época era prancheta e nanquim), deixaram que ele fizesse a parte chata: escrever com o normógrafo (outra relíquia). Em suma: devagarinho e com empenho ele foi investindo naquilo que era seu talento nato. E hoje é um ilustrador e vive bem disso. Ele poderia ter se conformado. Poderia ter pensado pequeno. Poderia ter posto a segurança em primeiro lugar. Poderia ter ficado sonhando com um talento imaginário por medo de se frustrar. Tenho certeza de que muitos garotos lá na Zona Longe devem ter seguido esse outro caminho, o caminho que não sai do lugar. Tenho certeza de que esses garotos poderiam dar mil desculpas e causas pra não ter se arriscado.

Mas um amigão já me disse: se você pode escolher entre dois caminhos é porque nenhum deles te interessa. Aquilo que é vital pra você não tem escolha.

Bom amigo esse, amigo que apostou no seu talento único pra filosofia e pensamento e tem hoje a Escola Nômade(www.escolanomade.org.br). Hoje eu entendo porque Pitágoras e outros caras querem acreditar que a vida é matemática: é vontade de crer que a vida caiba em fórmulas, medo dessa liberdade além da conta.Provoquei você? Tomara que sim.

http://blogs.msdn.com/renedepaula

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mulheres possíveis

Texto na Revista do Jornal O Globo.

'Eu não sirvo de exemplo para nada, mas, se você quer saber se isso é possível, me ofereço como piloto de testes.
Sou a Miss Imperfeita, muito prazer.
Uma imperfeita que faz tudo o que precisa fazer, como boa profissional, mãe e mulher que também sou: trabalho todos os dias, ganho minha grana, vou ao supermercado três vezes por semana, decido o cardápio das refeições, levo os filhos no colégio e busco, almoço com eles, estudo com eles, telefono para minha mãe todas as noites, procuro minhas amigas, namoro, viajo, vou ao cinema, pago minhas contas, respondo a toneladas de e-mails, faço revisões no dentista, mamografia, caminho meia hora diariamente, compro flores para casa, providencio os consertos domésticos, participo de eventos e reuniões ligados à minha profissão e ainda faço escova toda semana - e as unhas!
E, entre uma coisa e outra, leio livros.
Portanto, sou ocupada, mas não uma workaholic.
Por mais disciplinada e responsável que eu seja, aprendi duas coisinhas que operam milagres.
Primeiro: a dizer NÃO.
Segundo: a não sentir um pingo de culpa por dizer NÃO.
Culpa por nada, aliás.
Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero.
Pois inclua na sua lista a Culpa Zero.
Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os outros.
Seu pai e sua mãe, acredite, não tiveram essa expectativa: tudo o que desejaram é que você não chorasse muito durante as madrugadas e mamasse direitinho.
Você não é Nossa Senhora.
Você é, humildemente, uma mulher.
E, se não aprender a delegar, a priorizar e a se divertir, bye-bye vida interessante.
Porque vida interessante não é ter a agenda lotada, não é ser sempre politicamente correta, não é topar qualquer projeto por dinheiro, não é atender a todos e criar para si a falsa impressão de ser indispensável.
É ter tempo.
Tempo para fazer nada.
Tempo para fazer tudo.
Tempo para dançar sozinha na sala.
Tempo para bisbilhotar uma loja de discos.
Tempo para sumir dois dias com seu amor.
Três dias.
Cinco dias!
Tempo para uma massagem.
Tempo para ver a novela.
Tempo para receber aquela sua amiga que é consultora de produtos de beleza.
Tempo para fazer um trabalho voluntário.
Tempo para procurar um abajur novo para seu quarto.
Tempo para conhecer outras pessoas.
Voltar a estudar.
Para engravidar.
Tempo para escrever um livro que você nem sabe se um dia será editado.
Tempo, principalmente, para descobrir que você pode ser perfeitamente organizada e profissional sem deixar de existir.
Porque nossa existência não é contabilizada por um relógio de ponto ou pela quantidade de memorandos virtuais que atolam nossa caixa postal.
Existir, a que será que se destina?
Destina-se a ter o tempo a favor, e não contra.
A mulher moderna anda muito antiga. Acredita que, se não for super, se não for mega, se não for uma executiva ISO 9000, não será bem avaliada.
Está tentando provar não-sei-o-quê para não-sei-quem.
Precisa respeitar o mosaico de si mesma, privilegiar cada pedacinho de si.
Se o trabalho é um pedação de sua vida, ótimo!
Nada é mais elegante, charmoso e inteligente do que ser independente.
Mulher que se sustenta fica muito mais sexy e muito mais livre para ir e vir.
Desde que lembre de separar alguns bons momentos da semana para usufruir essa independência, senão é escravidão, a mesma que nos mantinha trancafiadas em casa, espiando a vida pela janela.
Desacelerar tem um custo.
Talvez seja preciso esquecer a bolsa Prada, o hotel decorado pelo Philippe Starck e o batom da M.A.C.
Mas, se você precisa vender a alma ao diabo para ter tudo isso, francamente, está precisando rever seus valores.
E descobrir que uma bolsa de palha, uma pousadinha rústica à beira-mar e o rosto lavado (ok, esqueça o rosto lavado) podem ser prazeres cinco estrelas e nos dar uma nova perspectiva sobre o que é, afinal, uma vida interessante.

Martha Medeiros - Jornalista e escritora

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

T maiúsculo

Hoje acordei sentindo uma felicidade enorme, daquelas que arrepia a pele e ouriça os pelos.

Olhei para o lado e ...uma nuvem escura invadiu a minha cama. Ela se foi.

Como? Como pude deixá-la sair assim, sem um toque nos lábios? O que fiz de errado? A noite não significou nada? O que fiz a noite passada?

Arrepio de desespero.

Vasculhei a casa inteira atrás de um ínfimo bilhete, uma linha sequer e NADA. Nem uma marca de batom na camisa, nem um pedaço de papel higiênico no lixo do banheiro, nada para provar que a noite passada existiu.

É tudo o que eu ganhei por dar o melhor de mim a ela: AQUELA INGRATA.

Muita RAIVA.

O chuveiro está esquentando demais, preciso arrumar isso. Será que ela roubou alguma coisa? Acho que não, aí já seria demais.

Deixe-me pensar... entrei no carro com a minha melhor roupa, meu melhor perfume, encontrei-a na hora certa, no lugar certo, sentindo a coisa certa. Então por quê?

Tudo bem que não foi bem um encontro, foi mais um, digamos, desencontro. Se aquela vagabunda da minha mulher não tivesse me seguido outro dia, nada disso teria acontecido.

Porque será que as mulheres são tão desconfiadas? Será que não sabem que basta confiar que o prazer desaparece? E que prazer teria trair sem desconfiança? E que prazer que ela tem, senhor! É um sentimento de louco.

Ai, caramba. Agora ferrou de vez, essa droga de racionamento e eu aqui, todo ensaboado. Cadê a toalha? ACHEI! Tem um fio de cabelo aqui! É loiro ou castanho? Deixa eu ver... droga, é da minha mulher.

Cadê a minha calça? Toda vez isso, também, essa mania de arrumação... tira todas as minhas coisas do lugar. Hum... camisa verde com calça marrom...é, ficou bom. Esse sapato está meio gasto, mas tudo bem. É um estilo.

Será que.. se eu voltar naquele bar eu vou encontrá-la de novo? É isso! Vou procurá-la. Puts, loira ou morena? No escuro nem deu pra perceber. Já sei, vou chamar o Alfredo e inventamos uma estória para fazer as moças gemerem. Assim vou reconhecê-la. Aquele perfume, aqueles gritinhos... Ih, a campainha!

Boa noite, quem é? Oi meu amor, pode entrar. Como? Você quer o quê? Mas o que você viu não foi bem o que aconteceu. Você está se sentindo bem? Está se sentindo nervosa? Irritada? Prestes a explodir? O divórcio? Pra quê, meu amor? Vai dar muito trabalho, imagina o quanto a gente vai gastar com aqueles sangue-sugas que vão querer tirar as nossas calças com um só olho? Vamos lá, eu sinto muito. Me perdoa. Estou me sentindo muito arrependido. Eu preciso que me perdoe. Isso, foi só uma aventura, você estava viajando, eu estava com saudades, na verdade não vivo sem você. Vem, entra, não chore, eu te amo, você sabe disso. E tem as crianças, elas precisam do nosso apoio e vão voltar logo da colônia. É verdade! Claro que gosto de você, afinal, estamos juntos há tanto tempo! Eu juro que não foi nada. Entra, dorme um pouco que eu já volto. Como? Onde eu vou? Comprar cigarro, oras.

É isso, quem sabe assim ela larga do meu pé. Adoro desconfiança!

Não. Está se sentindo mais calma? Vai para cama que vou loguinho. Beijinho aqui, vem.

Cadê a chave do carro? Achei. Ah, que sentimento horrível, como eu sou horrível. Nunca mais vou fazer isso.

Mas olha só quem vem do outro lado da rua! Não conheço mas... vai ser um grande prazer!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Existência de Deus - sentimento inato do homem.

“O tabuleiro de xadrez é o mundo. As peças são os fenômenos do universo, as regras do jogo são as chamadas leis da natureza. O jogador que está do outro lado está oculto a nós. Sabemos que seu jogo é sempre honesto, justo, e paciente. Mas também aprendemos, às nossas próprias custas, que Ele nunca deixa passar um erro, nem admite que alguém diga ignorância"

Thomas Henry Huxley, 1868 (biólogo e educador, mais conhecido por seu robusto apoio na "Teoria da Evolução" de Darwin.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Balaio

Não é todo dia que se faz 6 anos e nessa idade, festa é uma coisa primordial tanto para a criança, e principalmente para os pais.

Dessa vez, minha mãe caprichou na festa: cinquenta convidados, mais de mil docinhos, salgadinhos e quitutes, carrinho de cachorro quente, algodão doce. Ia ser um festão!

Feito sob encomenda, bordados e lese compunham o meu vestido azul céu que apesar de lindíssimo, dava uma coceira infernal. Na verdade, nunca gostei de vestido e aquele não era diferente. Nem choro nem vela fizeram com que minha mãe desistisse dele e lá fui eu, para a belíssima festa, com um bico imenso, os olhos vermelhos e uma coceira que "só eu conseguia perceber".

Mas tinha algo que fazia que, por vários momentos, eu esquecesse da coceira: "o balaio".

Para receber os presentes, mamãe deixou um balaio bem maior do que eu logo na entrada da festa. Todo mundo que chegasse colocaria os presentes ali. Imaginem vocês: 50 convidados significavam 50 presentes! Era um sonho para qualquer criança: um balaio lotado de presentes e tudo pra mim! E começou a tortura...

Durante toda a festa, eu brincava um pouco e ia verificar o balaio. - Mãe, posso abrir os presentes? - Não! Só depois que a festa acabar. E depois de tantos nãos, a minha pergunta já começou a ser: - Mãe, que hora vamos cantar parabéns? Já torcendo pra todo mundo comer e bolo e ir embora, pra eu poder atacar o balaio de uma vez por todas.

Quase 9 horas da noite, lá estava eu me despedindo do último convidado e ao bater o portão, saí em debandada em direção ao balaio, que transbordava pacotes de todos os tipos e tamanhos. Qual não foi minha decepção quando minha mãe gritou: - Não! Hoje já está muito tarde. É hora de dormir, amanhã cedo você abre tudo.

Essa é a maior sacanagem que os adultos já inventaram na vida, fazer uma criança esperar para abrir presentes, comer ovo de páscoa, tudo depois que dormir. Acho que sofro de ansiedade até hoje só de lembrar do quanto foi difícil olhar aquele balaio, maior do que eu, abarrotado de presentes, tudo pra mim... e ter que ir dormir sem abrir NENHUM!

Ok, como sempre fui uma criança obediente, fui dormir o mais rápido possível para acordar o mais rápido possível e poder, enfim, abrir os presentes.

A noite inteira foi marcada por pesadelos, sonhos de que eu ia abrir os presentes e eles não estavam mais lá. O balaio dançava ao meu redor, sussurrava brincadeiras aos meus ouvidos. Panelinhas, barbies, bonecas, joguinhos, tudo falava e dançava comigo.

Na manhã seguinte, acordei antes do horário normal e desci as escadas correndo, pois o balaio havia dormido no barracão, nos fundos da casa. Fui até a sala, a porta estava fechada. Na cozinha, a mesma estória. Subi até o quarto da minha mãe, entrei e chamei baixinho: - Mãe, vamos abrir os presentes? Já amanheceu. Ela colocou o roby e desceu lentamente, passou na cozinha, pegou um leite e saiu lá fora comigo.

Até que enfim eu ia saber o que tinha no balaio! Os 100m até o barracão pareciam uma eternidade.

A primeira coisa que vi foi uma claridade maior do que de costume saindo das janelas do fundo do barracão. De repente, olhei para minha mãe e ela se espantou, pois algo estava errado: alguém quebrou as grades do fundo do barracão, entrou durante a noite e esvaziou o balaio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Paladinos

“Há no mundo um pequeno número de pessoas muito especiais que se realizam ajudando os outros e construindo coisas positivas. Essas pessoas são paladinos da dedicação. São seres de luz, cuja satisfação reside em espargir felicidade em torno de si e em deixar um rastro de boas obras por onde passam.

Tais paladinos costumam estar sempre disponíveis e até mesmo oferecer-se para realizar, anonimamente, trabalhos de suma importância, sem esperar nenhuma recompensa nem remuneração. Sua gratificação é saber que o trabalho foi realizado satisfatoriamente.

Enquanto a maior parte destroi, esses poucos Herois da Humanidade constroem e fazem-no com a força de milhares, pois, mesmo sob o assédio destruidor da maioria, a Espécie Humana progride graças aos que se doam.”

"Tratado de Yôga" do Mestre de Rose

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Vida Promocional II - A visão empresarial

Ulisses entrou porta adentro com cara de psicopata. O dia havia sido um tanto conturbado. A nova empresa havia virado a sua cabeça do dia pra noite.

Uli se viu apontado por pensamentos sublimes de pagamento justo e remuneração com bônus para seus funcionáios, prêmios na festa de fim de ano, como uma bela viagem para Salvador num hotel com vista para o mar em reconhecimento ao esforço de todos durante o ano, e isso tudo, definitivamente, não fazia parte dos seus ideais de vida empresarial. A posição nova lhe atacava o espíritode maneira confusa e arrebatadora.

Além disso, a nova posição obrigava uma nova retomada em sua carreira, um salário mais modesto, verificar mesmo uma nova posição. Seu salário de dono de empresa mal dava para a manutenção de sua frota de helicópteros, quanto menos para o sustento de toda a sua família de um milhão de bovinos que, humildemente, ele criava num dos seus haras no interior do Mato Grosso do Sul. Era algo a se pensar...

Os desencontros foram reforçados pela vontade alienada de fazer o bem. Boas tardes, bons dias, um abraço amigo, grandes sorrisos, mas nada de acontecer o dribe final. Sua cabeça era nervosa e hiper-tensa e aguardava que tudo passasse no futuro, sem dar abertura de avançar o sinal.

Ulisses, pertubado, suado, cansado de insistir na recolhida, viu como única alternativa consentir com o veredito e chamou todos à reunião social. Enlaçados, os funcionários brindaram a nova aliança e se fez algazarra geral. Uma festa foi marcada para o próximo agosto, mês influente no calendário do ano e com tudo perfeito, foram consumadas as núpcias no andar de cima do prédio, com fogos de estontear o bairro inteiro.

Ao acordar no dia seguinte, Ulisses ja preocupado e infeliz, voltou ao trabalho e perdeu a primeira promoção, que foi mais modesta, graças ao seu esforço e sua nova posição social diante de seus funcionários, de homem modesto, casado e futuro pai de tantos funcionários felizes.

E a segunda perda de promoção se fez discreta e trouxe consigo um bom dia amigo, sorrisos no corredor, uma empresa alegre e cheia de gente vestindo a camisa.

E a perda da terceira promoção se fez dispersa e trouxe consigo o crescimento da empresa, gente fazendo fila para trabalhar, funcionários satisfeitos e cheios de orgulho, uma vontade imensa de ficar na empresa curtindo tudo e todos nas suas horas bem-vindas.

E a perda da quarta e da quinta se fizeram explosivas e trouxeram consigo muito dinheiro, muita harmonia, paz de espírito e um final de ano feliz para todos os envolvidos.

E Ulisses, enfim, começou a perder a noção de suas cinco novas promoções. E alucinadamente, começou a querê-las de volta, pois com tanta gente feliz e gritando seu nome, se sentia mal a qualquer ato menos heróico. O retorno das promoções ao grande Ulisses trouxeram a expansividade de volta, as portas tremendo e a cada entrada o berro original, cheio de mágoa e fúria insana.

E como num coito interrompido, seus funcionários aprenderam que tudo às vezes é nada e nada às vezes é mais nada ainda.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Tributo aos meus amigos

Os amigos são amores, mas também o são horrores.
Dão barriga, cerveja e rugas, dão risadas, lágrimas e tristezas.

Os amigos nos dão momentos inesquecíveis e nos levam pedaços inteiros.
São como facas que cortam em partes o coração, a cada partida, a cada surpresa, a cada caixão.

Amigos são como nuvens, suaves, aconchegantes, confortáveis e confiantes.

Amigos são como gelo, reais, terríveis, mas qualquer calor os derrete.

Amigos tem sempre um, por perto, por longe, sem eles não há vida, não tem porque, nem onde, nem de onde.

Amigos são como troncos que nos ajudam a respirar no rio da vida. Jogados à correnteza, nos dão o suspiro necessário para continuar.

Amigos são como fogo, nos acalentam na madrugada mais fria, cozinham os nossos problemas e nos dão de comer a esperança.

Amigos, que bom é ter-los. Tão lindos a vida inteira. Tão bom fechar os olhos e ver os cílios, as unhas, os dentes a sorrir, a abraçar, a ouvir e a cantar.

Amigos são como amigos, não tem explicação. Te expelem, te esperam, mas nunca te deixam, estão sempre no coração.

Aos meus amigos, que amigos são, como todos os amigos dos amigos dos meus amigos.

De dia, à noite.

Nasceu! Que fofa, a cara do pai!
À noite chora, mama, faz pipi, cocô.
De dia chora, mama, faz pipi, cocô.
Primeiro diz mamá. Depois diz mamã.

À noite chora, mama, vira na cama.
De dia chora, mama, veste a roupa, dá papinha, vomita.
Primeiro dá um passo, depois com outro pé.

À noite dorme, sonha e corre pra cama da mãe.
De dia escola, sopa, cotonete e band-aid.
Primeiro aprende a gostar de história. Depois aprende um palavrão.

À noite dorme, tosse e tira a coberta.
De dia corre, grita e faz careta.
Primeiro ama o papai, depois odeia a mamãe.

À noite leva bronca, dorme e abre o bocão.
De dia fuma, namora e faz tatuagem.
Primeiro apanha do pai, depois corre pra mãe.

De dia estuda, trabalha e dorme um montão.
De noite balada, cerveja e um baita sermão.
Primeiro responde pro pai, depois conta pra mãe.

De dia enxoval, casa nova e um barrigão.
À noite chora, mama, faz pipi, faz cocô e de novo:
Quem salva é a mãe.

Coração de mãe

Eles vão chegar a qualquer momento. A lágrima de desespero rolou sobre a pele suave, esperando adoçar a saliva já amarga pelo medo. Era a primeira vez que as crianças viajavam sozinhas, dois dias, sem conhecer ninguém.

Pensava neles a cada minuto, os segundos viravam horas, os noticiários explodiam acidentes na estrada. O pânico tomou conta da situação.

Dois dias, quarenta e oito horas aguardando a pior notícia. Será que eles vão descer na rodoviária errada? Será que comeram, tomaram banho, choraram a minha falta? Será que uma criança de 11 anos sabe como cuidar de outras duas de 9 e 7?

Mas era preciso confiar. Foi pela mãe que os filhos resolveram abandonar o conforto, a escola e os amigos. Foi por esperança que a mãe abandonou a família, os filhos e sua terra natal. Tudo valeria a pena? Talvez. Era preciso acreditar. E acreditar também que eles iam chegar, certinho como a mamãe explicou.

O ônibus já atrasado há duas horas mostra o pára-choque na entrada da Rodoviária. O vidro espelhado não deixa ver o que tem dentro. Pára na portaria, passam-se dois, três, cinco minutos intermináveis até que o fiscal libere os passageiros.

A mulher de vermelho desce com as malas e o travesseiro. A ansiedade aumenta, será que eles estão nesse aí? As lágrimas atrapalham, e de lenço, só a palma da mão.

Um homem com o filho, a esposa gorda de vestido de bolas rosas vem logo atrás. Um senhor idoso desce a escada bem devagar e volta, esqueceu sua frasqueira.

A mãe, já em pânico, rodeia o ônibus em busca de uma luz para seu desespero. Seus filhos, onde estão?

Até que as lágrimas cessam e quase num salto, ela leva um susto. Lá vem os três, descendo as escadas e com o coração da mãe nas mãos.

Dedico esse conto à Margarete, minha querida mãe e ídola.

domingo, 25 de outubro de 2009

Vida promocional

Ulisses entrou porta adentro com cara de desespero. A noite havia sido um tanto conturbada. A nova namorada havia virado sua cabeça de vez. Uli se viu apontado por pensamentos sublimes de enlaces matrimoniais, filhos e uma bela casa e isso, definitivamente, não fazia parte de seus ideais de juventude. A posição nova lhe atacava o espírito de maneira confusa e arrebatadora.

Além disso, a nova posição obrigava uma retomada melhor em sua carreira, um novo salário, mais alto, angariar mesmo uma promoção. Seu salário de estagiário mal dava para o cinema de quarta, quanto menos para o sustento de uma família. Era algo a se pensar...

Os encontros foram reforçados pela vontade alienada de copular. Beijos, abraços, grandes passadas e nada de acontecer o drible final. A menina era meiga e pura, e guardava a grande tacada para as núpcias, sem dar abertura de furar o sinal.

Ulisses, pertubado, suado, cansado de insistir na acolhida viu como única alternativa consentir com o veredito e chamou todos à reunião famíliar. Enlaçados, os noivos bindaram a nova aliança e se fez algazarra geral. Uma festa foi marcada para o próximo maio, mês influente no calendário do ano e, com tudo perfeito, foi consumada as núpcias em um honesto lugar do Guarujá.

Ao voltar, Ulisses já satisfeito e feliz, voltou ao trabalho e conseguiu a tão sonhada promoção, graças ao seu esforço e sua nova posição social, de homem honesto, casado e futuro pai do primeiro filho.

E a primeira promoção se fez discreta e trouxe consigo uma casa modesta, roupas novas e uma mulher satisfeita e cheia de carinhos.

E a segunda promoção se fez modesta e trouxe consigo um carro, uma filha prendada e uma mulher gorduchinha e cheia de mimos.

E a terceira promoção se fez dispersa e trouxe consigo um carro para a esposa, a primeira viagem a negócios para NY no dia do nascimento do segundo filho, fins de semana no clube jogando tênis, uma nova casa, uma escola melhor para a filha, duas babás, uma esposa garbosa, cheia de unhas, massagens e cabeleireiros, com roupas de grife e cremes de estética.

E a quarta promoção se fez completa e trouxe consigo um carro importado, um Armani engomado, um contador picareta, uma viagem a Paris com a nova secretária gostosa, uma moto para a filha, uma viagem holandesa para o filho, uma esposa ciumenta, um carro batido, algumas doses de uísque, uns bons maços de cigarro, uma amante picante e um escritório com heliponto no alto do edifício.

E a quinta promoção se fez explosiva e trouxe consigo um rombo na conta, uma mulher neurótica, um filho drogado, uma filha grávida, um pedido de divórcio, outras doses e doses e doses de uísque, uns joguinhos com os amigos e uma internação no Albert Eistein com taquircadia crônica e uma suspeita de cancêr no pulmão.

E Ulisses, enfim, após quatro meses num quarto de hospital, começou a perder as promoções. E a falta de promoção trouxe consigo contas pendentes, a hipoteca da casa, a venda do carro importado, do helicóptero, o trabalho novo da filha, o esforço do filho, os carinhos e mimos da esposa traída, o retorno à casa modesta, às contas impressas, aos fins de semana de pizza, ao ônibus, à labuta do dia-a-dia e aos abraços e orações em família.

Mas o mais importante que Ulisses ganhou com a sua falta de promoção foi a certeza de que, como num coito interrompido, tudo às vezes é nada e nada, às vezes é tudo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Lia Luft

Recebi esse texto hoje por e-mail e achei realmente interessante dividir o pensamento dessa grande mulher:

"Mês passado participei de um evento sobre o Dia da Mulher. Era um bate-papo com uma platéia composta de umas 250 mulheres de todas as raças, credos e idades. E por falar em idade, lá pelas tantas, fui questionada sobre a minha e, como não me envergonho dela, respondi.

Foi um momento inesquecível... A platéia inteira fez um 'oooohh' de descrédito.

Aí fiquei pensando: 'pô, estou neste auditório há quase uma hora exibindo minha inteligência, e a única coisa que provocou uma reação calorosa da mulherada foi o fato de eu não aparentar a idade que tenho? Onde é que nós estamos?'

Onde não sei, mas estamos correndo atrás de algo caquético chamado 'juventude eterna'. Estão todos em busca da reversão do tempo. Acho ótimo, porque decrepitude também não é meu sonho de consumo, mas cirurgias estéticas não dão conta desse assunto sozinhas.

Há um outro truque que faz com que continuemos a ser chamadas de senhoritas mesmo em idade avançada. A fonte da juventude chama-se "mudança". De fato, quem é escravo da repetição está condenado a virar cadáver antes da hora.

A única maneira de ser idoso sem envelhecer é não se opor a novos comportamentos, é ter disposição para guinadas.

Eu pretendo morrer jovem aos 120 anos.

Mudança, o que vem a ser tal coisa?

Minha mãe recentemente mudou do apartamento enorme em que morou a vida toda para um bem menorzinho. Teve que vender e doar mais da metade dos móveis e tranqueiras, que havia guardado e, mesmo tendo feito isso com certa dor, ao conquistar uma vida mais compacta e simplificada, rejuvenesceu.

Uma amiga casada há 38 anos cansou das galinhagens do marido e o mandou passear, sem temer ficar sozinha aos 65 anos.

Rejuvenesceu.

Uma outra cansou da pauleira urbana e trocou um baita emprego por um não tão bom, só que em Florianópolis, onde ela vai à praia sempre que tem sol.

Rejuvenesceu.

Toda mudança cobra um alto preço emocional.

Antes de se tomar uma decisão difícil, e durante a tomada, chora-se muito, os questionamentos são inúmeros, a vida se desestabiliza. Mas então chega o depois, a coisa feita, e aí a recompensa fica escancarada na face.

Mudanças fazem milagres por nossos olhos, e é no olhar que se percebe a tal juventude eterna.

Um olhar opaco pode ser puxado e repuxado por um cirurgião a ponto de as rugas sumirem, só que continuará opaco porque não existe plástica que resgate seu brilho. Quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar.

Olhe-se no espelho...

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Oração à Beth & Duca

Ó Senhor meu Pai, confio em ti, confio na tua decisão de trazer alegrias e de trazer tristezas. Confio na providência que sempre nos mostra que, mesmo a maior dor do mundo é um bálsamo em nossa evolução. Que a dor da morte nos ajuda a perceber que tudo a ti pertence, que somos meros filhos que, ainda imperfeitos, não entendemos a plenitude dos teus ensinamentos.

Senhor, peço a ti, nessa hora de dor, muita luz para clarear as trevas de nossos corações, peço alívio as nossas aflições e as faltas insubstituíveis; calma a esse coração de mãe dilacerado e feito em pedaços pela saudade, pelo pensamento de injustiça que não se entende e que não se aceita.

Pai celestial, em tua misericórdia, cuida deste coração, cuida desta mãe amada que sofre e chora o coração perdido. Que em sua dor, essa mãe encontre o consolo, o carinho da mão amiga do nosso Mestre e Irmão maior, Jesus Cristo. Que essa filha siga em paz, acompanhada pelas labaredas celestes, guiada com glórias e aleluias. Que essa mãe seja acariciada por tua face consoladora com o sono dos justos e tenha forças suficientes para vencer essa prova tão difícil.

Pai, só Tu és tão mavioso e tem o poder de consolar. Conduz-nos pelo bom caminho, nos faça aprender a sermos homens de bem para que na hora derradeira, tenhamos as glórias dos céus nos aguardando de portas abertas.

Obrigada Pai, por essa presença, por essa alegria, por essas lágrimas, pois indicam a saudade que somente os que podem amar conseguem sentir.

Obrigada pela presença dessa ilustre irmãzinha entre nossa família. Que ela possa seguir em paz, em harmonia na continuação de sua existência espiritual. Que possamos segurar a saudade e, na esperança de dias melhores, possamos aprender com mais essa experiência que a vida nos coloca.

Aos que ficam, a saudade clama mas o amor também. Que possamos aprender a lidar com esse amor da maneira mais sublime.

Beth e Duca, fiquem com Deus.

sábado, 17 de outubro de 2009

Mudar

Estou tão triste hoje, pensando em como às vezes a vida segue rumos que não podemos controlar, por mais que tentemos. E o pior de tudo é de repente você percebe que o mundo ao redor não muda e sim, somente você. E mesmo você mudando, isso nao basta, porque as pessoas ao redor ainda não perceberam que também precisam mudar e segue-se um ciclo triste de desentendimento, porque se você muda, há, em consequência, um distanciamento das relações que você levava antes, porque essa relação era baseada em pensamentos antigos, que já não permeiam sua cabeça. Mas se você ama, esse distanciamento faz sofrer, faz chorar, mas é inevitável.

Uma vez certa amiga me disse que no caminho da vida, você encontra amigos em vários momentos, mas esses amigos só se mantém por um tempo na mesma velocidade que você, porque em certo momento, a sua passada se torna mais rápida e você vai embora e ele não consegue te acompanhar. Em outros momentos, a sua passada não consegue acompanhar a agilidade do outro e é sua vez de ficar pra trás.

O que acontece quando a gente muda é muito parecido com isso...

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A vida de um cão



De um lado e de um outro seu rabo situa
o vento balança e mostra a rua.

A lingua molhada balança e voa,
mostrando que há vida na vida à toa.

Prum cão, um parque é tudo de bom
tem sol, tem grama, tem terra sem som
de carro, de grito, busina ou moto
só pássaro, grilo, corrida e mato.

A vida de um cão não tem preocupação
acorda, dorme, come e late de montão.

domingo, 4 de outubro de 2009

O reflexo

Eram seis da manhã e a rua já estava cheia de passos. Uns subindo, outros descendo. Os ombros se encostando em um leve afastar.

Entre os passos da esquerda, podia-se ver a sombra de uma pedra sendo ferida amargamente por um pedaço de ferro, que num constante, martelava a imagem que se espelhava nos olhos de All, um homem pequeno, mas forte. De suas juntas brotavam coágulos rubros, sua vista cumpria o exercício diário de se fechar a cada martelada, a cada pontada que a pedra insistia em causar em sua dor. Mas a vontade de ver o reflexo completo era intensa, tão intensa quanto a força que fazia para manter as pernas por tanto tempo encurvadas, sustentando seus 75 quilos.

O sol se pôs às 18:30h. Como de costume, All levantou devagar, quase sem respirar, para tomar seu café frio, ali deixado por seu filho, há 3 horas passadas. Já fazia uma semana e ainda tinha muito por terminar, mas só All sabia a sensação de olhar para o reflexo pronto.

E assim se foram os 45 dias. Com todas as honras, o prefeito foi em festa, dar boas-vindas àquela nova criatura que nasceu na praça XII. All ficou ali, logo atrás da multidão, fazendo vivas ao criador daquela obra. Seus aplausos eram suaves, enrolados em faixas limpas e brancas, que escondiam os anos de trabalho numa artrite já avançada.

Dadas honras aos prefeitos, arquitetos e vereadores, os passos acompanhavam com pressa os afazeres do dia. Os olhos passavam por aquele homem baixo, de olhar brilhante, como se fosse invisível. Apenas uma garotinha notou a lágrima de felicidade que rolou naquela pele enrugada, mas seus superiores já trataram de fazê-la não notar mais, chamando sua atenção.

E todo mundo passou e até falou: Saia da frente! Mas All só ria e se emocionava, com o reflexo de seus olhos e enchia de ar os pulmões. Ainda deu a última olhada saudosa, porém satisfeita e foi em direção a sua casa, aquela na qual passaria seus anos restantes.

Nesse exato momento, a garotinha vai com seus passos pela praça e pára um breve momento diante do reflexo de seus olhos, o mesmo reflexo que All teve há 20 anos atrás. Não se lembra daquela lágrima mas sente o ar se mover nos pulmões.

O medo

A força do medo
É capaz de transformar
A inocência em violência
A pureza em assassínio

Pelo medo o amor vira ódio
Quem ama enfrenta
Não sei se perde o medo
Ou se o medo de perder é maior que o próprio medo.

Beleza tão bela

Beleza tão bela
Que existe na flor
No gosto, no cheiro,
Olhar, beija-flor

No som das estrelas
Na água do mar
Na areia deserta
Na folha, no ar

Beleza tão bela
Que existe na cor
Que envolve, enlouquece
E causa torpor

Se alguém te falar
Do escuro do amor
Beleza tão bela
Também traz a dor.

Ontem e hoje

Ontem pedi pra você me entreter
Hoje peço pra me esquecer

Ontem pedi pro mundo me ter
Hoje peço pra me corromper

Ontem e hoje são diferentes
Passado e futuro
Presente de Deus
Passado e futuro
Presente de nós

Ontem pensei
Hoje acordei

Ontem e hoje
Contradição
Ontem e hoje
Sem direção

Ontem
Lutei
Hoje
Fartei

Pra que ontem
Se existe hoje?

Sem

Às vezes se abate
A tristeza
Às vezes a tristeza
se abate

A chuva não molha
O sol não queima
A lua não clareia

Andando na rua
Chinelos quebrados
Rostos retorcidos
Olhos nas lágrimas

Ver sem ver
Sentir sem sentir
Pensar sem ser

Cem problemas
Sem problemas

Dia

Abre os olhos
Pra acordar
Sol bem alto
Pra esquentar

Abre os braços
Mais espaço
Ar no encalço
Inspirar

A coluna
Esticar
As abelhas
Despertar

Já é dia
Sussurrar
Todo dia
Pra lidar.

Crianças

Inocentes
Perspicazes
Psicológicas e influentes

Puras de coração
Repletas de emoção
Esbanjam adrenalina
São como furacão

Hoje querem o mundo
Amanhã todo o espaço
Mas só ocupam 1 metro
E menos de meio agachado

Quisera eu entendê-las
Tão vivas que até dói
Principalmente os ouvidos

Só entende quem é criança
E que sonha em deixar de ser
Pra virar anti-criança
E deixar de viver.

Amanhã de ontem

Quisera eu soletrar
As pontas da tinta que escorre
Da vida que há de vir

Das músicas que quero ouvir
Das letras que não escrevi
Dos livros que ainda não li
E da fonte que não bebi.

Bis

Os olhos
Que trocam meus olhos
São doces de Ter

A troca de olhos
Suor, calcanhares
Que beiram
Tropeiam
Cheios de anseios

Olhos marcados
Cheios
De imagens
Desejos

Olhos que trocam
Sonhos
Lampejos
A vida em pêlo

Olhos
Teus olhos
Que deixam rastreio
De fogo e luz
De sombra e bis.

Grande

Escrevo pra ti
Pra não explodir
Escrevo porque
Preciso dizer
Do meu coração
Preciso ferir
Pro sangue sair

Escrevo agora
Tão grande a hora
Em cima de mim
Tão grande o momento
A hora do alento
Pequeno sorriso
Na hora do apito

Escrevo pra ti
Só pra te dizer
Que és grande
Tão grande
Que nem sei dizer
Só sei conduzir
Pra algum lugar
Se é que sei.

Sou

Vai dizer que sou eu

O sussurro do vento
A brisa da noite
A gota da chuva

Vai dizer que sou

A alma ardente
O coração pulsante
A mão gelada
A boca congelada

Vai dizer que
Não mais sou eu
Que pede à noite

Não mais sou
Só desalento

Não mais
Solidão

Não sem você.

Momento

Momento da vida
que diz amo
Momento este
Tão incerto
Momento correto
Momento incorreto
Momento do eu
Ou de mim
Ou de tu
Ou de nós

Momento incerto
De dizer porquê
Momento esperto
De dizer de quê
é feito o porquê

Momento
De amos e danos
De dores
De amores

Momento de saber
Momento esperado
Momento desesperado
Momento
de incerto, correto e esperto.

De 6 em 6

Tenho certeza
tenho razões
tem um buraco
já não tenho rédeas
mas não vou deixar
O Pai há de me dar

Ó vida
Quem te diz bela
não sabe
Se bela
Imbela também

Quem diz que diz
Dos pássaros
Tem toda a razão
De 6 em 6
caem
de 6 em 6
alçam vôo
Vai entender a lógica
De 6 em 6
Muda-se tudo

Já não tenho crença
Nem pai
Já não tenho sempre
Nem tive
Só tenho por quê
Quando
E como.

Dor

Às vezes o coração parece que vai desaparecer
Tão apertado que fica
E parece que quando se chora alivia
Mas depois começa a doer de novo
É uma dor lacinante, daquela que não existe remédio
Não existe cura
Só o tempo
O tempo tampa a ferida
Queima aos poucos e transforma em cicatriz

Agora é esperar
Até cicatrizar
E sonhar
Com o dia que tudo isso vai acabar
Até sumir
Pro meu coração parar de sangrar.

Saudade

Saudade do Mestre Ambrósio
Do Tom Zé
Do Rappa
Do Açaí da rua difícil de achar
Da rua pra atravessar
Do banco pra ir
Do Chá e do Caffé
Saudade do filme não assistido
Do lençol mal dormido
Da cama desfeita
Da toalha molhada
Do cheiro, da boca suada
Saudade da Elis
Do Chico
Do banheiro apertado
De toda alegria e tristeza
De todo sistema amuado
Saudade do aperto
Da força do peito
Da voz, da janela
Da porta entreaberta
Do banheiro fechado
Saudade do almoço
E da pizza de Sexta
que dói no peito.
E molha a vista.

Pinturas na pele

Energia tua
Me empurra
Entorna a pele
Faz pinturas

Energia tua
Preenche os espaços
De um mundo descalço
De um tempo varrido

Energia tua
Só tua
Que suga
E empurra
E espanta o ar
Dos pulmões

Energia tua
Que faz pensar
Na hora
Em agora
No ponto que flui.

O normal

Sentidos
Leve sede de anormal
correr
gritar
chorar
Depravar

Sede de amigos
Que outrora anormais
Se escondem em casacos
E óculos normais

Coisas do sistema
Da babaquice
Que impõe o normal
Do que é anormal

Ser feliz é o lema
Boca aberta todo dia
Fragmentos de um bom dia
Extinto o irracional
Tudo normal
Dentro do anormal

Gangorra do mar

Vai e vem
Vem e vai
Solta espuma
Grita
Chora
Ri
Gargalha
Lacrimeja quando vem
Esvazia quando vai

Sobram conchas
Galhos
Lembranças
Mas logo
De novo vem
Cobre tudo
Transborda
Arrepia
E logo se vai

Torna dia
Torna noite
Vai e vem
Vem e vai

Ela ou Eu?

Ela olhou para e viu com os dois olhos aquele que já não via há muito. Aquela sombra que a luz da lamparina vermelha desenhava no ladrilho azul, aquele sorriso que fazia seu corpo gemer. E dentro de sua volúpia, relembrou o muito esquecido nos sonhos, dentro da mais profunda vontade.

Ela olhou de novo e como uma miragem, a sombra se fez matéria e no seu coração, deslumbrou a alegria e toda felicidade que existe nos pequenos e brilhantes momentos de chegada, depois de uma longa espera.

Ela olhou por força e sem acreditar, que tudo o que não pudera alcançar em seus pensamentos era verdade, e era realidade, e reclamava dentro, a incomodar.
E nos passos que faltavam morava a eternidade.

Ela andou o eterno e por fim, chegou ao lugar que já tardou chegar e abraçou com garra o sonho e a amarra que prendia e arfava dentro do peito, a tremular. E enfim amou, como nunca antes amou, seu sonho, sua luz. Sua mais pura fantasia era a mais pura realidade.

Se um dia eu pudesse entender o que penso, talvez eu pudesse ser mais feliz.Talvez eu pudesse mostrar aos outros e a mim mesma a vastidão de amor que tenho a dar ao mundo, a todos os que me cercam. Mas não sei... algo dentro de mim é mais forte, me trava, me entorpece, me faz fugir da realidade.

De manhã eu sou luz, sorrio feliz, falo, cantarolo e deixo transparecer a felicidade imensa de ser abençoada por Deus. Mas à tarde já não sou eu, ou talvez essa seja eu. Entristeço, já sem lágrimas. Um aperto toma conta do meu peito, esvaindo minhas forças.

À noite, ando sem rumo, não penso. Parece que nada importa, nem as palavras, nem os sorrisos, nem a tristeza e nem a alegria. E tudo é igual, tudo não importa, tudo é passageiro.Por isso, acho e deixo de achar. Paro de sonhar, paro de falar, paro para pensar em nada, absolutamente nada.E há quem não entenda... Mas de noite não importa mesmo... A noite para mim foi feita para dormir ou para embriagar, mas como não bebo, fico com os lençóis e com o travesseiro.

Ela não dorme, não come, não bebe, mas sonha com a cama, a comida, a bebida e a filha.

Ela não fala, não chora, não expressa o que gosta, mas clama, mas berra e aperta o que gosta.

Ela não entende, não sabe, não quer entender que ela quer viver, quer sonhar, quer beber da fonte que está ali, logo ali, na frente da frente da frente da fronte.

Um dia e o mar...

Olha a praia, que bonita. Com areia em todo lugar.
Mas tanta água me dá sede e não dá nem pra beber, porque tem sal, você acredita?
Toda essa água cheia de sal.
A minha mãe não deixa eu ir lá, na água. E eu também nem queria, porque tenho medo, é muito fundo e a onda é imensa, deve dar umas 20 criancinhas, uma em cima da outra! Até mais, umas 50.
Outro dia eu fui na praia e tinha uma baleia gigante no meio da areia, e tinha um monte de gente adulta em volta dela. Imagina! Eu fiquei com muita vontade de ver ela bem de pertinho. A minha mãe me falou que ela tinha morrido porque ficou presa na areia. Aí eu fiquei pensando se areia é perigoso, mas acho que só para os peixes, porque eles não sabem respirar fora da água e eu não sei respirar dentro da água. Será que as outras pessoas sabem? Até que seria legal!
Lá em casa tem o Kim, o meu cachorro. Ele tem um rabo gigante, que bate na minha cabeça quando ele passa. Quando eu chego da escola, ele fica latindo, mas eu não tenho medo porque sei que é de alegria. E ele fica mais alegre ainda quando eu levo ele para passear na rua, mas aí, ele quer fazer cocô e eu tenho que ajudar o meu pai a pegar o cocô e colocar no saquinho. É nojento.
O Kim nunca viu um peixe, mas acho que ele nem liga. Ele detesta água. Pra tomar banho tem que segurar ele bem forte, porque ele sai correndo, todo cheio de sabão e se joga na grama, e fica todo melado. Aí tem que brigar com ele, senão ele fica teimoso. Mas o que ele gosta mesmo, é quando vou na feira com a vovó e trago um osso bem grande, maior que ele. E ele morde e lambe e gruda no osso um monte de tempo e não dá nem pra chegar perto, porque ele fica bravo. Acho que ele pensa que a gente vai tirar o osso dele. Teve um dia que eu dei uma lambida no osso para ver se era bom, mas não tinha gosto. Não sei porque ele gosta tanto. Eu gosto de batata frita, é mais gostoso, e também da carninha verde que a minha vó faz, e que minha mãe chama de couve. Na verdade, eu gosto de comer salsicha e tomar suco de groselha. É muito bom, você já experimentou?
Eu adoro a minha mãe, o meu pai, a minha vovó, o meu vovô e também os tios e as tias, que são um montão. Todo dia eu conheço um novo. São tantos que nem lembro. Na verdade, eu adoro todo mundo.
Mas o que eu adoro mesmo é ver o meu príncipe e virar uma princesa, que nem na história. E voar em cima do mar no cavalo de água e pular em cima das baleias. E então, fico só olhando a areia e o mar, e fico querendo ir lá. Um dia eu vou, dentro do grande mar.
Um dia, quando a minha mãe deixar.

Saia já da minha vida

Saia já da minha vida, não agüento mais essa agonia que me irrita, me intriga e comove quem me vê!
Será que já não bastam todos os anos de tortura, quando a saia da Benedita na minha cara investia, todo dia sem cessar? E Dolores, quem diria? Agora mãe de família, outro dia a se gabar: Filhos? Marido? Nem pensar!
Vou agora, mudo tudo, do sapato ao sobretudo. Mas a meia furada insiste em molestar. Puxa a unha, faz-se encrave, tudo isso pra irritar!
Chega! Não quero mais! Nem viver nessa surdina, nem trabalho vai chegar. Solto logo essas presilhas, que me prendem ao meu dia. Vou pra guerra, solto o verbo e vão logo me matar!
Morro então sem respirar, nem lembrado vou ficar.
Lua passa sem notar, nem meu túmulo iluminar.
Essa vida, passageira. Nesse trem não vou ficar.
Saio já da minha sina! Tira a saia, Benedita! Que eu quero me esbaldar!